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Editorial no Estadão

A arte do cancelamento

 

Bienal de São Paulo levou a cultura do cancelamento aos extremos do ridículo ao impedir a participação de uma palestrante por causa dos pecados de um parente que morreu faz cem anosPor Notas & Informações09/11/2025 | 03h002 min de leitura

A Bienal de São Paulo cancelou um debate com a princesa Marie-Esméralda da Bélgica.

Não por suas opiniões – o que já seria constrangedoramente autoritário. Marie-Esméralda, por sinal, é ambientalista, feminista e defensora dos indígenas. Mas ela foi condenada por associação a um parente de quarta geração morto há mais de um século: Leopoldo II – o monarca responsável por atrocidades no Congo.

“Trate cada homem segundo o que merece, e quem escapará ao açoite?”, indagava o príncipe Hamlet. Imagine ser tratado segundo os deméritos do seu tio-bisavô? O que os diretores da Bienal sabem das eventuais transgressões de suas avós ou de seus tataravôs? Se o leitor tiver um tio ou irmão delinquente, deve pagar por ele? É a volta do Santo Ofício – agora de cabelo colorido e crachá de curador – castigando pessoas não por suas faltas, mas pelos pecados de fantasmas.

Nada simboliza melhor o embrutecimento de nossa cultura do que uma instituição artística que pune alguém por associação genealógica enquanto faz proselitismo do combate ao “preconceito”. A Bienal reza o credo da “diversidade e inclusão”, mas decreta que algumas vozes são impuras demais para ecoar sob suas abóbadas. Em nome da “pluralidade”, consagra a segregação; em nome da “liberdade”, o silenciamento. Nem a devoção da princesa filantropa a causas progressistas – até ao cancelamento de estátuas de seu antepassado – lhe valeu redenção. É uma caricatura do pecado original – com patrocínio estatal e curadoria “interseccional”.

A cultura do cancelamento é o confessionalismo redivivo: uma cruzada moral que persegue heresias e distribui indulgências. Os velhos inquisidores queimavam livros; os novos, reputações. As fogueiras agora ardem entre as vaidades dos conselhos de curadoria, dos diretórios acadêmicos, das redes sociais. Cada palavra deve ser purgada; todo artista, doutrinado. Os dissidentes são denunciados, silenciados, expulsos – não por crime, mas por pensamento. A condenação é multitudinária; a penitência, involuntária; o perdão, impossível.

Foi para se libertar dessa mentalidade que o liberalismo nasceu – contra o Estado confessional e suas teocracias da virtude. Spinoza, Tocqueville, Mill, Nabuco e tantos outros entenderam que a verdade floresce no dissenso, não na unanimidade. A civilização liberal é o triunfo do debate sobre o dogma. A esquerda que se dizia herdeira dessa tradição hoje a trai. Troca o debate pela excomunhão, a dúvida pela ortodoxia, a livre expressão por ostracismos performáticos. Os velhos reacionários queriam policiar corpos; os novos progressistas, consciências.

O Brasil tropicalizou a moda do cancelamento – inclusive a pauta “decolonial” importada das metrópoles, recitada com sotaque francês e marinada nas Ivy Leagues – com tintas burlescas. As elites culturais, que vivem de verbas públicas, posam de “resistência” libertária enquanto ruminam ressentimentos tribais. Universidades desconvidam palestrantes, mostras vetam artistas, editoras censuram palavras. Guerra cultural regada a caipirinha e dedução fiscal.

O caso da Bienal é mais que um vexame diplomático: é sintoma de uma decadência – com elegância – intelectual, moral e estética. A instituição que deveria ser o templo da experimentação perverteu-se em tribunal de pureza ideológica. A arte, que deveria interrogar o mundo, rebaixou-se a homilia. O curador que veda debatedores por culpa ancestral é irmão espiritual do burocrata que veda livros por blasfêmia. Juram servir à justiça – mas servem à intolerância. A submissão da imaginação ao medo e da sensibilidade à patrulha não geram engajamento, só empobrecimento.

O progressismo que prometia libertar o mundo dos dogmas fabricou seu próprio catecismo. Substituiu os sacerdotes por “militantes”, as Escrituras pelas “pautas”, o pecado pela “culpa estrutural”. E como todo moralismo sem misericórdia, produz o mesmo terror que dizia combater. O farisaísmo identitário tornou-se pior do que o que desprezava: uma seita sem Deus, mas com uma legião de inquisidores.

A Bienal não cancelou uma princesa. Cancelou a cultura. E, com ela, a liberdade: essa heresia liberal que insiste em sobreviver a regimes de pureza e seus justiçamentos travestidos de justiça.

Comentários (8)

Gisele Faganello
há 4 dias

O cancelamento da palestra da Princesa Maria Esméralda da Bélgica pela Bienal de São Paulo representa mais um episódio profundamente lamentável de intolerância — algo que não dialoga com o verdadeiro espírito da cultura, da arte e do pensamento plural que esse tipo de instituição deveria promover.

Quando a diversidade de vozes é silenciada, perdemos todos. A cultura deixa de cumprir seu papel essencial de abrir caminhos, fomentar diálogos e aproximar diferentes perspectivas. O gesto da Bienal, ao impedir a realização da palestra, fere esse princípio e empobrece o debate público.

A manifestação do SINAP-ESP/AIAP, publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, traz o peso institucional e ético de quem reconhece a gravidade do ocorrido. É essencial que posicionamentos como esse encontrem eco, para que não normalizemos atitudes que limitam a troca de ideias e restringem o acesso à informação e ao conhecimento.

Mais do que indignação, esse episódio desperta a necessidade de reafirmar valores que não podem ser negociados: respeito, liberdade de expressão, pluralidade e responsabilidade cultural. A arte existe para ampliar horizontes — não para erguer barreiras.

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Gilberto Marques
há 4 dias

tendo como tema “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática”, como isso foi possível?! Não seria a princesa uma "viandante" que andou estradas diferentes dos seus antepassados?...

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Chico Maia
há 4 dias

Esse posicionamento SINAP-ESO/AIAP representa a maioria dos Artistas profissionais e vocacionados que não são consultados, mas sim excluídos, dessas políticas midiáticas excludentes que cada vez mais promovem o afastamento e o desinteresse pelo que deveria nos atrair às Artes Plásticas e visuais. Parabéns!

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Suzana meyer garcia
há 4 dias

Parabéns pelo posicionamento.

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Suzana Meyer Garcia
há 4 dias

Nossa "cultura" nunca esteve tão empobrecida. É muito triste vê-la sequestrada por ideologias e radicalismo, estamos jogando a História na fogueira, queimando tudo que não combina com nossa caneta da censura. O resultado é um empobrecimento de ideias e retrocesso da evolução. Nada escapa, nem a música, nem nossa língua pátria. Parabéns ao Estadão e ao Sindicato pelo posicionamento.

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Clóvis Camargo
há 5 dias

Lamentável, ao invés de evoluirmos, estamos cada vez mais vivendo um retrocesso.

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Elisa Murgel
há 5 dias

Absurdo uma curadoria, que se diz progressista, vetar alguém por “culpa” ancestral. Basta conhecer a história de nossos ancestrais que, certamente, encontramos varios que tiveram condutas condenáveis. Em uma família real, onde todos tem suas vidas nos registros históricos, a exposição é total. Assino embaixo desta nota de repúdio.

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Paco de Assis
há 5 dias

O SINAP-ESP / AIAP - Sindicato dos Artistas Visuais vem, primeiramente, parabenizar este conceituado jornal pela publicação da matéria “A Arte do Cancelamento”, que traz à tona um tema de grande relevância para o mundo das artes visuais — um campo que, lamentavelmente, tem recebido cada vez menos espaço na mídia. É sempre alentador ver um veículo comprometido em promover o debate sobre as expressões artísticas e seu papel transformador na sociedade.

Colocamo-nos à disposição, enquanto entidade representativa da classe artística, para contribuir em pautas que deem voz aos artistas e reforcem a importância da arte visual como instrumento de reflexão, inclusão e transformação social, entre tantas outras funções fundamentais que ela desempenha.

Contudo, aproveitamos este contato para manifestar nosso protesto diante do cancelamento da palestra da Princesa Marie-Esméralda , decisão da Bienal, justificada pelo fato de seus familiares, em gerações passadas, terem estado ligados a processos de repressão social. Entendemos que tal argumento não apenas desconsidera o percurso e o comprometimento individual da Princesa em favor das comunidades indígenas, da saúde e do meio ambiente, mas também representa uma forma de intolerância que não pode ser adotada no meio cultural.

Vale recordar que a principal missão do atual presidente da Bienal é justamente reconstruir e fortalecer a imagem da instituição junto à sociedade. A decisão de cancelar a participação de Maria Esméralda, sob tais justificativas, caminha em sentido oposto a esse objetivo e pode representar um retrocesso significativo nos seus esforços de diálogo da Bienal com a sociedade

Por fim, lamentamos constatar que, num momento em que a intolerância cresce em diversas esferas do mundo, o campo da arte — que deveria ser um território de liberdade e escuta — reproduza mecanismos de exclusão.

Gostaria ainda, de poder ler uma matéria, no próximo dia 16 de novembro - “Dia Internacional da Tolerância” - abordando todos os segmentos artísticos e suas contribuições para a melhora do mundo.

Paco de Assis

Presidente o SINAP-ESP / AIAP / UNESCO – Sindicato Nacional dos Artistas Plásticos Sindicato dos Artistas Plásticos / International Association of Art em aliança com UNESCO.

São Paulo 10/11/2025

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